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terça-feira, dezembro 23, 2003

CLARICE LISPECTREMAN
(A Escritora e seus Monstros)

Joana lavava a louça de dobradinha. Todo o sábado era a mesma coisa, os colegas de trabalho do marido na Viação vinham almoçar e confraternizar. Estrangeira, nascida no leste, embora tenha sido criada no Brasil, dona Clarice nunca entendeu direito aquele evento. Participava, era sua função social, mas no fundo não pegava muito bem o sentido da coisa.

No finzinho da louça, sai do ralinho entre legumes, uma barata. Susto, Clarice solta um prato, que quebra e paralisa. A barata paralisa. O tempo paralisa. Olham-se, estratégicas, em dúvida, espera e co-dependência. Clarice, a barata, Clarice.

- Não adianta lavar a louça, a cozinha, a casa, a alma, eu venho dos cantos que você não enxerga e espalho minha imundicie pelos cantos que você não alcança. Quem sou eu?

Clarice em silêncio olha fixamente o inseto. Move o caco de prato na mão direita e, num momento quase inexistente, o deposita sobre a barata, no meio dela, cortando-a, mas não matando, fazendo verter seu interior. Clarice em silêncio olha a massa branca e se vê nela, no detergente, na dobradinha, no mármore gasto da pia, no marido ausente, na empregada que não veio, nos armários de toda a casa, em todos os armários do mundo, tudo feito da mesma coisa, todos a mesma matéria, a mente uma corrente circulatória do ser que é o mundo. E ela não sendo o tempo inteiro.

- Você sou eu.
- Meu nome é Gregor Helen Palmer, mas pode me chamar de G.H. Sou você, sim, mas o você que não viveu.
- E eu nem quero que viva, não quero saber, não tenho mais tempo de mudar, volte para o seu ralinho e me deixe em paz com estes restos de intestino de boi.
- Não adianta fugir de mim. Eu sempre estarei aqui, no escuro, no ralo da sua existência.
- Não! Suma!
- Eu posso sumir, mas não deixar de existir.
- Não!!
- Não adianta. Você não é mais cega, Joana.
- Suma!
- Não!
- Sim!
- Não!
- Suuuuuuuuuumaaaaaaaaaaaaa!!!!!!!!!!!!!

Desesperada, Clarice coloca as mãos na cabeça, encolhe, agarra os cabelos, começa a tremer, suar, chorar, aflorar de si mesma. Suas roupas se rompem, um grito não acaba e ela começa a crescer, crescer, ultrapassar os limites da casa, romper paredes, teto, transformar-se num monstro sobre a cidade. Ainda tonta, lembra-se da barata, olha para ela que começa a crescer de dentro do ralinho, tornar-se outro monstro gigante jogando sua sombra oval sobre a cidade.

Olham-se, estratégicas. Em silência. A barata inspira fundo e começa a inflar o peito, como que carregando uma arma fantástica de monstro japonês, infla o peito e arremessa na cara de Clarice um jorro de massa branca, a verdade sobre ela própria, a falta de sentido da sua vida.

Arrasada, Clarice se prostra no chão coberta da gosma branca. A luz que ainda brilhava em seu coração e a impelia para as enfadonhas obrigações do que ela achava que era a vida, sem nem perceber que só tinha uma, a luz que ainda brilhava começa a piscar. Um alerta de alguém que morreu por dentro. Clarice sobreviveria à própria consciência? Clarice sobreviveria ao encontro consigo mesma?

(música pop japonesa)

De repente, Clarice começa a levantar a cabeça como se recobrasse forças. Cambaleante, ergue-se, erege-se, equilibra-se, olha a barata com olhos amargos e sem inocência - eles nunca mais terão a inocência que a fazia tão bonita – e dispara:

- “A energia da terra precisa ser renovada. as idéias novas precisam de espaço. O corpo e alma precisam de novos desafios. O futuro bate à nossa porta, e todas as idéias - exceto as que envolvem preconceitos - terão chance de aparecer. O que for importante, ficará; o que for inútil, desaparecerá. Mas que cada um julgue apenas as próprias conquistas: não somos juizes dos sonhos de nosso próximo.”

A barata faz um olhar confuso.

- O quê????

Clarice dispara novamente:

- "Existe uma obra de arte que nos foi destinada a criar. Ela é o ponto central de nossa vida, e - por mais que tentemos nos enganar - sabemos como é importante para a nossa felicidade. Geralmente esta obra de arte está coberta por anos de medos, culpas, indecisões. Mas, se decidirmos tirar essas aparas, se não duvidarmos da nossa capacidade, somos capazes de levar adiante a missão que nos foi designada.
E esta é a única maneira de viver com honra."

A barata revela um olhar de pânico:

- Paulo Coelho????????????????

Clarice avança disparando, a barata recua apavorada, emitindo sons ultrasônicos, contorcendo as antenas, tentando proteger-se com as próprias asas.

- “Um dos mais poderosos exercícios de crescimento interior consiste em prestar atenção às coisas que fazemos automaticamente - como respirar, piscar os olhos ou reparar nas coisas à nossa volta. Sempre que fazemos isso permitimos que nosso cérebro trabalhe com mais liberdade - sem a interferência de nossos desejos. Dessa maneira, certos problemas, que pareciam insolúveis, terminam sendo resolvidos, certas dores, que julgávamos insuperáveis, terminam se dissipando sem esforço.”

A barata grita:

- Paulo Coelho não!!!!!!!!!!!!

A barata cai sobre a cidade, destruindo prédios, coberta de massa branca. Clarice a observa por um momento. Imóvel. Clarice limpa o suor do rosto, vira as costas e anda lentamente em direção ao futuro, ao seu místico futuro. Mas a barata meio ressuscitada abre um de seus olhos, vira-se em silêncio, levanta-se por trás da heroína alheia e começa a encher novamente o peito, engatilhando o derradeiro ataque. É quando Clarice vira-se rápida como um raio, como uma revelação sobre a existência, e dispara:

- Maktub!

E a barata cai morta.


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