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sexta-feira, agosto 05, 2005

Editora Companhia das Lésbicas apresenta...

ENTRE QUATRO PAREDES (e três mulheres)

Parte 3

Inês tem o olhar perdido no canto da sala. Estela a interroga agressivamente. Josefa fica jogada na poltrona com os olhos fechados.

ESTELA
Por que você me odeia assim?

INÊS
...

ESTELA
Desde que você entrou nessa sala não parou de me agredir um minuto. Mas nunca tentou ver se eu sou uma pessoa legal, se eu já li Sartre, se ajudo os pobres ou se beijo bem. Qual é o seu problema comigo? É por que eu sou loira? Ou porque sou gostosa?

INÊS
Eu não tenho problema nenhum com você. Você é um problema pra você mesma.

ESTELA
Rá. Pensa bem. Se não for inveja, qual é a razão que você tem pra me infernizar?

Josefa abre os olhos.

JOSEFA
Infernizar?

INÊS
Você representa o que as mulheres lutam contra há anos. Você gosta de ser submissa, você vive para agradar seu homem, você usa seu corpo para esconder o seu intelecto, você desvaloriza a nossa classe.

ESTELA
A nossa classe? Ih, baixou a Betty Friedan.

INÊS
Se nós não pararmos de usar esse apelo fácil à testosterona como instrumento de manipulação a gente não vai a lugar algum. Esse apelo nos coloca em uma situação de inferioridade, desvalorização e até infantilização. A gente tem que esconder o corpo para poder mostrar o resto.

ESTELA
Agora baixou a fundamentalista islâmica.

INÊS
E em você só baixa a pomba gira, né?

ESTELA
Pelo menos eu faço o que eu quero e não o que eu acho que tenho que fazer. E voltando um pouco no seu raciocínio, sendo eu uma lésbica, eu uso meu corpo pra seduzir uma mulher, e não um homem. Não seria isso um elogio às mulheres, uma forma de feminismo?

INÊS
...

JOSEFA
Nossa, nunca pensei que você fosse capaz de pensar nisso.

INÊS
Pois é, fiquei sem resposta.

ESTELA
Alguma de vocês sabe cantar?

JOSEFA
Hein?

ESTELA
Cantar. Não aguento mais essa música, já estou quase com saudades do CD da Zélia Carolina que entalou no som do meu carro.

INÊS
Eu não sei cantar. Eu não sei nada...

ESTELA
Não se deprima, minha cara, você fica ainda mais chata.

INÊS
Eu deveria ter vivido uma vida de verdade. Fui deixando pra depois, cumprindo minhas obrigações e, quando chegou a hora, eu não tinha nada, nem ninguém, nem tempo...

JOSEFA
Agora Inês é morta.

ESTELA
Hahaha!

INÊS
Não seja ridícula. Ufa, eu estava quase me tornando confessional.

ESTELA
Aproveite o embalo e nos conte quem foi a psicossapa que te matou.

INÊS
A psicossapa sou eu.

ESTELA
Você!?

JOSEFA
Você!?

INÊS
Vocês estão se repetindo de novo.

Josefa se aproxima de Inês. Com as costas da mão, enxuga a lágrima que corre pelo rosto dela. Fala sedutoramente no seu ouvido.

JOSEFA
Não chora, gata, não posso ver uma mulher chorando. Fora que isso esconde esses seus olhos lindos. Confia na gente. Se abre.

INÊS
Eu vivi a vida louca, como dizia o Ricky Martin. Aliás, Ricky Martin era homem ou mulher?

JOSEFA
Isso não importa agora. Quero saber de você. Fala aqui pro Zé, fala.

Inês hesita, mas fala.

INÊS
Eu ficava com as mulheres, às vezes até namorava um pouco, mas nunca era a pessoa certa. Ou era muito patricinha, ou muito masculina, ou moderninha demais, ou não lavava bem as mãos ou tinha dreads com colônias de fungos... Nunca ninguém era tão perfeita quanto eu.

ESTELA
Aliás, você não perde esse hábito, né amiga...

INÊS
Ok, vocês não entendem nada mesmo...

JOSEFA
Calma, calma, sssshhhh! Estelinha, por favor, dá um tempo. Fala, princesa, eu quero ouvir a voz que vem de dentro de você.

INÊS
Eu esnobei todo mundo. Até que eu conheci Guinevere. Ela era bonita, inteligente, feminina sem exageros, bem vestida, depressiva e atormentada. Eu a amava. Pensava nela o tempo inteiro. Perdi o controle sobre as minhas escolhas.

ESTELA
Depois eu é que sou machista...

JOSEFA
Estela, por favor...

INÊS
Um dia entrei no Ritz e ela estava lá, sentada numa mesa bebendo, sorrindo, flertando com uma loiraça belzebu. Provavelmente alguma sapa produtora. Fiquei paralisada como há muito não ficava, mais parada do que você na cama, teteia.

ESTELA
Você acha que vai me ofender assim?

INÊS
Guinevere veio falar comigo. Disse que não era nada do que eu estava pensando. Que não significava nada. Essas coisas. Aí eu cometi um grande erro.

ESTELA
O que foi?

JOSEFA
O que foi?

INÊS
Vocês ensaiam isso?

JOSEFA
Desculpe, prinça... Continue.

INÊS
Eu olhei pra ela e disse: Guina, eu te amo. O olhar dela transbordou de indiferença. Ela despejou seu manhatan dentro da minha calça. Aquele líquido gelado escorreu pela minha perna, entrou pelos meus dedos dos pés, eu estava de sandália. Ninguém manda lésbica querer usar sandália. Ela deu as costas e nunca mais falou comigo.

JOSEFA
Puxa, Inês, como você sofreu!

Estela imita silenciosamente, mas sarcasticamente, o gesto preocupado de Josefa.

INÊS
Ainda não acabou. Um dia passei na frente da loja de uniformes do Iguatemi e vi, através de vitrine, Guinevere lá dentro com a loira, que estava experimentando uma roupa de empregada.

JOSEFA
Ah, não!

ESTELA
Daquelas com avental de organdi??????

INÊS
Essa mesmo.

JOSEFA
Que horror!

ESTELA
Que tudo!

INÊS
Fui pra casa, coloquei o disco da Betty Blue e, na hora que entra o sax, bebi uma embalagem industrial de soapex. O resto vocês já sabem.

Josefa abraça Inês com força. Afoga sua nuvem lágrimas em seu peito. Estela olha a cena com uma leve irritação, ao mesmo tempo em que um respeito solidário a impede de falar. Pelo menos por este momento. Pelo menos enquanto a dor estiver tão presente naquela sala. Simone canta alto, muito alto, preenchendo o silêncio da morte.

Continua...

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