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segunda-feira, agosto 08, 2005

Editora Companhia das Lésbicas apresenta...

ENTRE QUATRO PAREDES

Parte 4


Depois de chorar por uma meia hora, Inês está imóvel na sua poltrona. Estela arranca as cutículas com as unhas. Josefa começa a falar.

JOSEFA
Enquanto vocês discutiam, eu fiquei pensando numa coisa.

ESTELA
No que?

JOSEFA
Naquilo que você falou sobre infernizar.

INÊS
Que eu infernizo ela, coitadinha.

ESTELA
Não sou bem eu que estou fazendo cena de coitadinha.

JOSEFA
Calem-se, mulherzinhas. Dá pra me escutar?

ESTELA
Fala chefinho.

JOSEFA
Você falou que ela estava aqui para te infernizar. Talvez esteja mesmo, afinal, aqui é o inferno. Talvez nós tenhamos sido colocadas aqui com o objetivo de infernizar uma a outra até que a gente aprenda alguma coisa sobre a vida.

INÊS
Ou morte.

JOSEFA
Como quiser.

ESTELA
Uma lição?

JOSEFA
Pode ser, uma lição, uma compreensão, um flash de lucidez como diria Clarice.

ESTELA
Mentira que você sabe ler!

JOSEFA
Inês, preste atenção: você chegou aqui altiva, cheia de razão, dona da verdade e vítima de uma psicossapa. Mas a sua convivência com Estela fez você entrar em contato com o que realmente aconteceu na sua morte e encarar a sua própria fraqueza. Você não sente em paz agora?

INÊS
Pra falar a verdade, sim. Me sinto livre da minha vida, da imagem da perseguida de Guina me perseguindo, da vergonha de ser corna, da posse. Agora não tenho nada a perder.

JOSEFA
É por isso que estamos aqui. Infernizamos uma à outra até encontrarmos a nossa verdade pra podermos descansar em paz.

ESTELA
Ah, que ótimo saber disso. Fico muito feliz de saber que promovi a paz interior dessa cretina arrogante. Mas me diga só uma coisinha: por que diabos continuamos aqui? Se esse fosse o objetivo, já estaríamos livres pra perambular pela vida eterna. Mas não. Continuamos aqui, sentadas nessas poltronas horrorosas de korino, com essa estátua cafona com a cara da Zélia Carolina e o corpo da Zizi Miranda, OUVINDO ESSA MÚSICA HORRÍVEL, INSUPORTÁVEL, MELEQUENTA!

JOSEFA
Talvez ainda falte algo.

ESTELA
Faltar o que? Um torneio de sinuca? Um campeonato de cuspe? Ver quem tem a maior dilatação? Eu já contei como morri, você também, a vaca que chora também, e nada aconteceu!

JOSEFA
Talvez eu não tenha contado toda a verdade...

ESTELA
Sério, amiga? Aconteceu algo mais naquele rafting além de entrar água na sua lanchinha 44 bico largo?

JOSEFA
Por que você é tão cruel? Onde você quer chegar com esse sarcasmo e esse tom de crítica e reprovação? Provar pra gente que apesar de loira, patricinha e passiva você é capaz de gerar pensamentos lógicos com começo, meio e fim? Nossa, que legal. Você quer que a gente tenha a mesma opinião que você? Qual é o seu problema porque parece que o nosso você sabe, né?

ESTELA
Uiuiui, quanta macheza pruma mocinha do seu tamanho.

JOSEFA
O que você está insinuando, Estela?

ESTELA
Eu não estou insinuando. Eu estou sendo bem clara. Aliás, comigo as coisas são assim, bem claras. Inclusive eu não tenho o menor problema com o que eu sou: uma mulher.

JOSEFA
Só podia ser isso...

Estela imita Josefa com a voz forçadamente grossa.

ESTELA
“Só podia ser isso...” (Volta a falar normalmente, mas com raiva.) A Zélia Carolina tem voz grave. Você finge. O meu pai gosta de futebol. Você finge. O Tom Cruise tem um pau no meio das pernas. Você finge. Você só finge!

INÊS
O Tom Cruise foi um mau exemplo.

ESTELA
Tem razão. A Magic Paula, talvez?

JOSEFA
Eu não finjo. Eu me sinto assim. Você não entende. Ninguém entende.

ESTELA
Claro que ninguém entende, amor. Você é uma mulher. Mu-xx-lher. Dois cromossomas X, duas tetas, uma vagina, amor. Mu-lher. Não importa o quanto você tente, isso não vai mudar.

JOSEFA
Existem tratamentos...

ESTELA
Claro, existem tratamentos. Você pode enxertar um pênis e tomar hormônios. Assim como você pode lixar seus dentes, bifurcar a sua língua, implantar chifres de silicone e nunca, jamais, nem passando por mil cirurgias, se tornar um lagarto. O resultado dessa operação, minha querida, não é um pênis, é uma cicatriz pendurada entre as suas pernas, um quelóide gigante, um...

INÊS
Tetéia chega!

ESTELA
Nossa, parece que temos dois homens na sala.

ESTELA
Você não percebe quando passou dos limites? Você não percebe quando está magoando uma pessoa? E sem motivo nenhum!

ESTELA
Ela é uma louca, uma freak! É por causa de travestis como ela que as pessoas acham que nós, lésbicas, somos pessoas com problemas. Porque ninguém sabe que existem lésbicas como eu ou até você, vai, que parecem pessoas normais. Na hora H, o que aparece, é isso, esses seres híbridos com voz fina, tabacow colado na cara e uma meia dentro da calça.

JOSEFA
Meia? Como meia? Você sabe o quanto eu gastei nesse pacotinho de silicone holandês?

Josefa vai tirando o pinto pra fora, Inês interrompe, tenta pôr o pinto de volta para a calça.

INÊS
Zé, guarda isso, agora não, calma...

Inês acalma Josefa, mas não larga o pinto.

INÊS
Calma, relaxa, ela só tá te provocando, não perca o controle, eu sei o que tem aí, no fundo ela também sabe...

JOSEFA
...

INÊS
Calma...

JOSEFA
Eu não consigo...

INÊS
Sshhhhh, calma, relaxa...

JOSEFA
É que eu não consigo relaxar enquanto você segura o meu Charlie.

INÊS
Ah, desculpe.

ESTELA
Charlie?!?!?!

JOSEFA
É, Charlie. E as minhas namoradas são as Charlie’s Angels.

ESTELA
Ai, minha nossa senhora do l word...

INÊS
Tetéia, chega. Se ela se sente homem, o que é que tem? Isso não é problema seu. As patricinhas hétero também não fazem nenhum bem se comportando do jeito que se comportam. E tem o outro lado: se não fossem as butches, machorras e sapatas que não conseguem esconder o que sentem, o resto do mundo nunca saberia que nós existimos.

ESTELA
Mas, Inês Pressiva, hello? Lembra daquele seu papo de umas duas horas atrás sobre machismo? ELA NÃO É UM HOMEM! E ELA QUER SER UM!

Josefa baixa a cabeça, apoia nas mãos. Fala baixo, derrotada.

JOSEFA
Ela tem razão. Eu não sou um homem. Não porque não tenho pinto, nem porque não tenho voz grossa. Eu não sou homem porque eu não tenho culhões.

ESTELA
Graças a deus, não tem nada mais feio do que um saco peludo.

INÊS
Não fala assim, Zé, eu te acho bem macha...

ESTELA
Você tá é com tesão.

JOSEFA
A verdade é que eu sou uma mulherzinha sentimentalóide. Foi por isso que eu morri.

ESTELA
Mas não foi salvando a sua perereca de estimação?

JOSEFA
Na verdade, eu nem tentei salvá-la.

ESTELA
O que?

INÊS
O que?

JOSEFA
Realmente é bem desagradável quando as pessoas ficam repetindo a mesma frase.

INÊS
Desculpe, escapou.

ESTELA
Conta logo o que aconteceu?

Josefa desvia seu olhar para o nada enquanto conta a história. Mas parece que está olhando pros peitos da estátua de bronze.

JOSEFA
Na noite anterior ao nosso rafting, a gente tava na pousada em Brotas com mais 8 casais de amigas. Estávamos nos preparando para dormir quando a Rô disse que tinha perdido sua faquinha de caça lá fora.

ESTELA
Rô?!

JOSEFA
É, Rosana Marília. Minha namorada. Ex. Viúva. Sei lá.

INÊS
Continue, Zé.

JOSEFA
A Rô saiu pra procurar a faquinha e eu fiquei lá, arrumando a cama. Foi quando eu vi a faquinha no chão. Fui atrás da Rô, avisar que tinha achado. Quando eu cheguei perto, vi que ela estava falando no telefone. E presenciei o diálogo mais obsceno da minha vida.

ESTELA
Ela tava falando com outra????

INÊS
Mas que piranhona!

JOSEFA
Ela chamava a outra de vênus de mamilo, sereia dourada do farol da madalena. Minha grá, meu vermont. Dizia que queria sorver o doce líquido dos seus favos de mel sagrado de deusas de lesbos. Minha coxinha creme, ela dizia. Minha coxinha creme.

A voz de Josefa some. Os soluços escapam.

ESTELA
Isso não se faz, é muito brega.

INÊS
Você espancou bem ela, Zé? Encheu a cara dela de porrada? Esmagou as falangetas dela com um martelo? Escondeu cupim no Tampax dela?

JOSEFA
Não. Eu sou um rato. Ou uma rata. Dei as costas e fui embora, silenciosamente. Quando ela voltou para o quarto, eu já estava na cama. E ela quis transar. Se insinuou, me beijou, me obrigou a tocá-la.

INÊS
E você???

ESTELA
O pau subiu?

JOSEFA
Primeiro eu fiquei em choque, depois resolvi corresponder porque ainda não sabia o que fazer. Precisava de tempo pra pensar. E sabe o que é pior? Logo no começo da trepadinha, quando eu a toquei, a gruta azul já estava inundada. Só de falar com a outra no telefone.

ESTELA
Deprimente.

INÊS
Absurdo.

JOSEFA
Foi por isso que, no dia seguinte, quando ela caiu do barco, eu não fiz nada para salvá-la. Mas ela conseguiu escapar mesmo assim, se agarrando ao pinto de plástico flutuante que uma golfista amiga nossa tava usando dentro da calça e jogou na água pra ela.

INÊS
E aí, e você?

JOSEFA
Eu? Quando voltei pra casa, percebi que eu seria capaz de matá-la e que isso era coisa de mariquinha. Não pude superar essa verdade. No fundo, eu não passava de uma mulherzinha histérica de ciúme. Uma psicossapa. Disse pra Rô que eu tinha que passar em casa pra pegar umas coisas. Eu queria ficar sozinha. Bebi duas garrafas de Lambrusco e cortei os pulsos com um Trim que era do meu bisavô. O sangue se misturava com o vinho no chão branco do banheiro. Chegava a ser bonito.

INÊS
Zé...

ESTELA
Inês, deixa ela quieta. Esse momento é dela.

As duas se sentam, desconfortáveis. O korino range, desconfortável. O caldinho de feijão esfria. O coração delas, esse sim, esse esquenta.

continua..

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