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quarta-feira, agosto 17, 2005

Editora Companhia das Lésbicas apresenta...

ENTRE QUATRO PAREDES

Parte 5


Josefa está deitada no chão, sem camisa, peitos enfaixados, gotas escorrendo pelo rosto, suor e sofrimento. Inês olha pro nada, sentada da sua poltrona. Estela passa batom. Sem olhar, Inês fala.

INÊS
Tá borrado.

ESTELA
Hein?

INÊS
O batom. Tá borrado.

ESTELA
Onde?

INÊS
Aqui... Tudo.

ESTELA
Merda, como eu vou passar batom se eu não tenho espelho?

INÊS
Não passa.

ESTELA
Sua invejosa, você quer que eu fique pálida e abatida pra não afuscar a sua estonteante beleza, né?

INÊS
Claro. Pra disputar o amor da múmia aqui.

JOSEFA
Qualé, eu to quieta aqui no chão, não precisa ofender...

INÊS
Desculpe. É que essa Tetéia é muito chata.

ESTELA
Eu não tenho culpa se você não tem vaidade. Alguém tem uma colher pra eu poder ver se tô passando o batom direito?

Josefa levanta-se, pára na frente de Estela, cara a cara.

JOSEFA
Faz o seguinte: eu fico como seu espelho. Você passa o batom e eu mostro, no meu rosto, onde fica borrado ou não.

ESTELA
Querida, você não chega aos pés do meu espelho...

JOSEFA
É isso ou nada. Pode ficar igual ao Robert Smith se quiser.

ESTELA
Peraí, peraí. Ok, vem cá.

Estela passa batom, Josefa percorre o caminho da maquiagem com o dedo, indicando onde borra ou não. Inês observa. A música insiste, a estátua ignora, o feijão esfria, nem o trim corta o ar, cada vez mais denso.

INÊS
O espelho...

As duas viram-se ao mesmo tempo e dizem:

JOSEFA
O que é que tem?

ESTELA
O que é que tem?

Silêncio. Inês repete.

INÊS
O espelho. Tudo não passa de um grande jogo de espelhos...

Josefa e Estela voltam a se olhar. Espantadas sem saber direito por quê.

INÊS
Olhando daqui dá pra perceber. Vocês são a mesma pessoa. A mesma alma. As mesmas frases e reações, os mesmos excessos.

ESTELA
Credo, Inês Gotável, você está querendo me comparar com esse troglodita que parece que teve um entorse no mamilo, enfaixada desse jeito?

INÊS
Sim, estou. E comigo também, pra sua alegria. Porque quando você consegue olhar além das aparências, coisa que não deve ser fácil pra você, dá pra notar uma série de coisas em comum.

ESTELA
Querida, não seja ridícula, olha a sobrancelha dela, nunca viu uma pinça, como você pode me comparar a isso? Cite uma semelhança que seja.

INÊS
A personagem.

ESTELA
Que personagem?

INÊS
A sua. Essa “pseudo-feminilidade” que você representa. Assim como a “pseudo-masculinidade” que ela representa. Assim como o “pseudo-equilíbrio” que eu fico representando. Tudo está se diluindo, você percebe?

ESTELA
Ene-a-ó-til-não. A minha feminilidade não se diluiu porque não é pseudo. Essa sou eu.

INÊS
Essa não é você. Essas somos nós. Quem se expôs aqui até agora? Quem desvia o assunto o tempo todo para os outros? A morte da sua personagem, Tetéia, é uma questão de tempo.

JOSEFA
A morte da personagem! É isso! Não adianta a gente morrer, só sairemos daqui quando nossas personagens morrerem. Quando morrermos de verdade.

INÊS
Brilhante dedução, Zé. E se continuamos aqui é porque nem toda a verdade foi dita. No que me diz respeito, eu contei tudo. Foi humilhante e deprimente, mas eu contei.

JOSEFA
Eu também.

ESTELA
E eu também, fofas.

INÊS
Você não contou nada, Tetéia. Você só disse que tava num provador da Gap pensando na Shane. Que eu saiba, isso não mata ninguém.

ESTELA
Ai como você é chata.

INÊS
Não desvia o assunto, eu tô de saco cheio de ficar aqui.

ESTELA
Eu já disse tudo o que aconteceu.

INÊS
Você está borrada.

ESTELA
De novo?

INÊS
Não só o batom, tudo! Você está borrada, suas memórias, sua verdade e sua vida são um grande borrão. Está na hora de deixar as coisas mais nítidas.

Estela se joga na poltrona, fecha os olhos e os ouvidos e começa a cantar bem alto, tentando ignorar a pressão que as outras duas fazem.

ESTELA
Uma tigresa de unhas negras, íris cor de mel...

Quando ela tira as mãos dos ouvidos e abre os olhos, Josefa e Estela continuam olhando incisivamente para ela.

INÊS
Nós temos todo o tempo do mundo pra esperar.

Estela se fecha de novo.

ESTELA
Não demora muito agora, todas de bundinha de fora...

Abre os olhos e as duas continuam lá. Impassíveis. Inês senta-se na poltrona de Estela. Abraça Estela que, desconfortável, cede aos poucos. Estela deita-se no colo de Inês.

INÊS
O que está aqui dentro (Inês põe o dedo na testa de Estela), por trás de tudo? Você sabia que só existem 2 pessoas no mundo capazes de entender o que aconteceu? Capazes de perdoar você?

ESTELA
Minha mãe e a sapa da biblioteca que queria me comer e me proteger?

INÊS
Não. Eu e o Zé. Só a gente.

ESTELA
Por que?

INÊS
Porque nós somos o seu espelho. Por isso sabemos que algo de diferente aconteceu aquele dia no provador da Gap. Por isso insistimos tanto que você conte. Porque a gente sabe, a gente sente e a gente aceita. O que quer que seja.

Deitada sobre as pernas da outra, Estela fecha os olhos e respira fundo. Sente cheiro do Carefree de Inês. Junto com uma lágrima, deixa escapar uma frase.

ESTELA
Não era da Gap. Era da C&A.

JOSEFA
Ah, eu tenho uma blusa da C&A!

INÊS
Eu também.

ESTELA
Eu estava experimentando uma cueca. Eu me acho sexy de cueca.

JOSEFA
Deve ficar uma delícia mesmo.

ESTELA
Mas não era só isso. Eu poderia experimentar cuecas na Marisa, na Pernambucamas, até na Zara, se eu quisesse. Mas é que tinha uma mulher, uma gerente da C&A, eu passava mal com ela. Ela era linda, tinha olhos verdes, cabelo meio curto, meio comprido, falava baixo e pouco, sem olhar nos olhos, sentava de pernas abertas. Um dia eu até a vi dirigindo uma pick up velha com o cotovelo pra fora...

INÊS
Hmmm!

JOSEFA
Eca.

ESTELA
Eu era apaixonada por ela. Ia na C&A a toda hora e sempre procurava alguma peça que não tinha do meu tamanho pra ter uma desculpa pra falar com ela.

INÊS
Nossa, que técnica eficaz.

JOSEFA
Deixa ela falar.

ESTELA
Um dia eu tomei coragem e deixei um recado no espelho do provador escrito com batom, um convite para um café e meu telefone. Claro que eu deixei um cartão telefônico junto pro caso do celular dela ser pré-pago e estar sem crédito. Ela me ligou, saímos, tomamos capuccino, jogamos pedrinhas no lago do Ibirapuera, fizemos tiro ao alvo no Playcenter. Ela ganhou uma perereca de pelúcia, beijou e me deu. Naquele dia, ela nem voltou pra casa. Foi morar comigo.

JOSEFA
Que romântico!

INÊS
Que lésbico!

ESTELA
Íamos fazer...

INÊS
Inseminação artificial!

ESTELA
Como você sabe?

INÊS
Tive um insight. Nossas almas são gêmeas, lembra?

ESTELA
Ahn... Estava tudo pronto pra inseminação. O porteiro do prédio ia vender o esperma por 100 reais. Compramos várias revistinhas de sacanagem pra ajudá-lo na tarefa. Já tínhamos até acoplado uma seringa com a sementinha dentro do pinto do cinto, pra que ela pudesse literalmente gozar dentro e fazer um filho em mim.

JOSEFA
Que romântico!

INÊS
Que lésbico!

ESTELA
Que seja. Bom, eu estava montando o cenário pra essa noite especial enquanto a Jack não chegava...

JOSEFA
Jack?!

INÊS
Jack?!

ESTELA
É, Jaqueline. Enquanto ela não chegava do trabalho eu enchi a casa de velas aromáticas. O porteiro inclusive teve que bater punheta no banheirinho dos funcionários atrás da portaria porque o cheiro das velas fez ele enjoar e vomitar no lavabo. E eu caprichando nos preparativos. Pus a mesa com a louça especial de festa e os talheres que ficam no faqueiro de caixa de madeira trancada a chave. Tinha shiitake de entrada e 3 pratos na mesa: um pra mim, um pra ela e um terceiro com o esperma. Íamos comer ostras, que estavam descongelando em cima da pia, com molho branco, farofa e feijão. Eu estava ansiosa pela noite mais especial de nossas vidas. Ouvi o motor do mercedes parando lá embaixo...

INÊS
Ela tinha um mercedes?

ESTELA
O ônibus que ela pegava era mercedes. Ouvi quando ele parou no ponto que fica em frente ao prédio onde moramos e fui ansiosa olhar pela janela.

INÊS
Ah, tá.

JOSEFA
E aí?

ESTELA
Ela desceu do ônibus, mas não desceu sozinha. Junto com ela estava uma loira. Elas descem de mão dadas...

INÊS
Pãtz.

Estela engole em seco.

ESTELA
Elas descem de mãos dadas, olhando para os lados. Jack leva a loira para trás da casinha onde ficam os butijões de gás. Lá, ninguém poderia vê-las. Ninguém, exceto por mim.

INÊS
Tetéinha...

ESTELA
Eu posso me garantir contra qualquer mulher, sabe? Eu sei cozinhar, lavar, passar e dar de quatro. Mas a loira simplesmente se ajoelhou e fez um boquete na Jack, como se ela fosse um homem. E isso nunca tinha me passado pela cabeça! Jack gozou em 3 segundos! Como eu nunca pensei nisso antes? Que tipo de mulher eu sou? Que burra!

INÊS
Calma, Té, a gente não pode pensar em tudo...

JOSEFA
Mas foi uma bela idéia...

ESTELA
Eu tinha que ser a mulher perfeita! Eu tinha que ser gostosa e também inteligente e rica! Aí vem uma suburbana qualquer e rouba o meu macho com um boquetinho de 3 segundos? Foi o fim, entende? Eu, derrotada por uma garota com uma camiseta da C&A cheia de apliques de tachinhas e lantejoulas que provavelmente nem terminou o colegial!

INÊS
Camiseta de tachas e lantejoulas é foda mesmo...

ESTELA
Pois é! E como eu ia criar um filho? Com que valores? Pra mim estava tudo acabado. Vesti um tutu de bailarina, coloquei uma música e pulei pela janela abraçada ao pinto da Jack, que graças a deus, ela não tava usando naquele momento. Enquanto eu mergulhava na morte, ouvia o refrão ficando cada vez mais longe... (Estela canta) “Saio da cidade, procuro só a escuridão, a purificação na calada noite preta. Eu fecho os meus olhos, a cama e o coração, perdido entre um sim e um não, na calada noite preta. Deus, deus, deus, aonde eu vim parar, à noite preta vou me entregar. Calada noite preta, noite pretaaaa...”

Lágrimas calmas navegam pelo rosto de Estela. Josefa olha pra ela eternecida. Tira sua faixa do peito para enxugar o rosto e a alma de sua amiga, seu espelho. O sofrimento de todas era o sofrimento de cada uma. Inês não se move, os olhos parados no nada. Sussura pra ninguém ouvir, e todas ouvem retumbantemente.

INÊS
O inferno não somos nós. O inferno é a outra.


continua...

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