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sexta-feira, agosto 03, 2007

PACKING

a novel by J. T. Leroy Merlin


Capítulo 1


Faz quatro horas que Paula está naquela estação deserta. Ninguém à vista. Nenhuma cidade à vista. Nenhum trem passou nem parece que vai passar. Está sozinha, no meio do nada, no meio do Marrocos, esperando o trem pra Tânger que supostamente passa dentro de três horas. Sente um pouco de fome, mas tem um pacote de chocolates na mochila que está guardando pra mais tarde. O problema é a vontade de fazer xixi.

Decide tentar as portas da estação em busca de um banheiro. Uma. Trancada. Duas. Aberta. Uma pequena sala com mais ou menos um centímetro de água sobre o chão, nenhuma pia ou louça de banheiro, um baldinho com um resto de água suja e um buraco no chão sinalizado por uma revoada de moscas. Não pode ser. Paula levanta a barra do jeans e pisa com cuidado no chão inundado. Inspeciona o buraco e chega a conclusão que sim, aquilo era o banheiro. Impraticável.

Durante a próxima meia hora ela estuda suas possibilidades. Fazer xixi na rua, num canto perto da estação? Com sua sorte seria pega. Não tem nenhum arbusto ou árvore ou acidente geográfico que possa encobrir a cena e mesmo com zero seres humanos por perto, com certeza uma multidão se materializaria no momento em que pusesse a arraia de fora.

A vida inteira fora assim, as estatísticas se desmentindo contra ela. Quando era criança, por mais improvável que fosse a situação, um professor de biologia resolveu ilustrar uma explicação medindo os dedos médios dos alunos. Descobriram que tinha o maior da classe e durante dez anos carregou o apelido de E.T. Phone Home. Mais velha, louca de ácido em casa, viajou na água oxigenada e descoloriu faixas nos pelos pubianos. No dia seguinte quando viu o que tinha feito, estava atrasada para a faculdade e não tinha tempo de desfazer a obra de arte. Mas também, quem iria ver? Ninguem, a não ser que fosse atingida por uma explosão na aula de química e desmaiasse e fosse levada para a enfermaria e tivesse que tirar a calça queimada. Ganhou o apelido de Zebruca, que depois evoluiu para Coluna do Meio.

Era também aquela que sempre gritava quando rodos resolviam ficar quietos. E que toda vez que acendia um cigarro, o ônibus ou a comida chegavam. E que usava saia em dias de vento.

Aos quinze anos, por outros motivos, parou de usar saia mas a estatística continuou sacaneando. Há mais ou menos um mês vivia a dor e a delícia de um relacionamento de oito anos com Lisa, a mulher da sua vida. Um dia estava na depilação e comentou que tinha uns pelos no peito que enchiam o saco, quem sabe existia alguma maneira de removê-los definitivamente. A esteticista, que tinha unhas curtas, buço e cara de safada, pediu para ela tirar a blusa e o sutiã para examinar. Depois de uma estranha e cuidadosa análise que consistia em movimentos circulares com leves torcidinhas nos mamilos, a mulher disse que precisava usar a boca pra sentir melhor a situação. Paula achou meio estranho mas até que não era ruim e lá embaixo estava começando a se formar um calorão, então ela deixou. Fechau os olhos no segundo em que a outra meteu a boca no seu peito, pensando ao mesmo tempo que nunca tinha traído a namorada e que se o exame já era essa delícia, remover os pelos seria uma explosão de prazer.

E as probabilidades entraram em ação. Lisa, que trabalhava num vilarejo vizinho, que morava do outro lado da cidade, que se depilava no mesmo lugar há vinte anos, decidiu naquele dia trocar de salão. E mesmo que os números provem que recepcionistas nunca vão ao banheiro a essa hora do dia, a de lá estava neste exato momento cagando, e Lisa foi direto da recepção para a sala de depilação sem bater na porta (coisa que ela fazia sempre em qualquer lugar) e pegou Paula com a boca na botija. Ou com a botija na boca.

De lá Lisa for a para paradeiro desconhecido e mandou apenas um telegrama composto pelo texto “acaou pt”.

Paula ficou arrasada. Passou 32 dias trancada em casa olhando pro telefone, comendo China in Box e chorando em cima do álbum de fotos das duas. Esqueceu de alimentar o gato que ou morreu ou fugiu, ninguém sabe direito. Claro que foi mandada embora porque emprego nenhum quer saber o quanto dói a sua bunda. Um dia tava em casa vendo O Céu que nos Protege na TV e chorando pela pobre Kit totalmente sozinha no meio do deserto do Saara e se identificou demais, minina, parecia ela! Vendeu a TV, o som e as raquetes de tênis, empacotou duas mudas de roupa numa mochila e vôou pra Casablanca.


(continuo ou não? você decide.)

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