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terça-feira, setembro 18, 2007

MULLET'S GUN

parte 3


Nada é dito no quarto enquanto Mullet toma nota. Na verdade, ela demora mais que o normal para ter tempo de pensar. De se recuperar. De se esforçar mais para manter o interrogatório num nível profissional. Quando se sente pronta, limpa a garganta e recomeça.

“Ok. O que a senhora estava fazendo naquele apartamento ontem a noite, Sra. Anderson?”
“Laura. Eu fui visitar um amigo. A gente se reúne quase toda semana na casa de alguém pra tomar vinho, pedir pizza, conversar. Ontem foi na casa do Erik.”
“Eric é o dono do apartamento?”
“Sim. Erik Estrada.”
“Quem decidiu que seria na casa dele?”
“Ele mesmo. Na semana ficou meio combinado.”
“E o que aconteceu?”
“Em princípio, nada demais. Quer dizer, as pessoas de sempre começaram a chegar pela hora de sempre, umas oito e meia. Cada um com sua garrafa de vinho. Mas tinha alguma coisa estranha.”
“Por exemplo?”
“A TV estava ligada na novela e as pessoas comentavam.”
“E?”
“Elas nunca comentam. De repente, de uma hora pra outra, todo mundo achava a Camila Pitanga o máximo. E aquele outro cara também, como é o nome dele?”
“Não sei…”
“Não importa. O fato é que ninguém nunca tinha tocado nesse assunto e de repente não se falava em outra coisa. Daí eu disse que achava ele meio canastrão e ficou um silêncio mortal, como se ninguém soubesse o que dizer. Fui pra cozinha pegar mais vinho. Quando voltei tinha acabado a novela e tava passando jogo e todo mundo falava mal do locutor. Aí eu sugeri que se trocasse de canal ou tirasse o som. De novo, ficaram mudos me encarando. E foi assim a noite inteira com todos os assuntos.”
“E o que isso quer dizer?”
“Não sei! É como se eles não conseguissem… Pensar. Só repetir.”
“…”
“Como se os memes estivessem saindo da sua área de armazenamento e ocupando as áres do cérebro que a gente usa pra raciocinar.”
“Como assim?”
“Imagina que antes os memes ficavam no Hard Disk, certo?”
“Sim.”
“É como se eles tivessem enchido o HD e começassem a invadir a memória RAM.”
“Entendi. Mas… Memes?”

Laura estava tão empolgada com seu discurso de pânico e alarme que esquecera de se certificar de que todo mundo na sala sabia do que estava falando. Claro que não. Tudo isso era absurdo e ela estava louca. Repetindo mentalmente o que acabara de proferir ela percebe como nada fazia sentido. Esconde o rosto nas mãos, mais uma vez envergonhada.

“Desculpe. Acho que devo ter tido uma concussão e um coágulo elaborou essa teoria estapafúrdia.”
“Você quer rever o seu depoimento?”

Laura quer sumir. Alguma coisa lhe diz que está certa, mas se insistir nessa história sem pé nem cabeça anda vai passar por louca. Tem que ir com calma, pensar bem antes de sair dando depoimentos desconexos. Ela respira fundo e olha para a parede, sem coragem de encarar Mullet.

“Tá bom. Foi assim. Eu tava na casa dos meus amigos, mas eles estavam estranhos. Apáticos e ao mesmo tempo tendo arroubos de empolgação quando todos concordavam uns com os outros. Quando eu discordava eles se tornavam frios, depois começåram hostis. Quando eu disse que nem sempre buzinar é feio, mas que ás vezes é necessário, eles me trancaram no armário. Depois disso, não sei o que aconteceu.”
“Como assim, por que?”
“Não sei, por isso, porque eu acho que ás vezes a gente deve buzinar no trânsito sim.”
“Tá meio na moda achar que isso é falta de estilo mesmo. Arroganciazinha de classe média, né? De qualquer maneira, não é motivo pra agredir alguém e trancar no armário.”
“Pois é!”

Laura se sentiu de repente tão compreendida no meio do desamparo dos últimos acontecimentos e locais pelos quais passou que sentiu um aperto no estômago e um choro sem aviso. Foi muito rápido, quando viu estava com a cara enfiada na camiseta soluçando.

Mullet não sabe o que fazer. Tem vontade de abraçar, mas não pode. Pega uma das mãos dela e acaricia.

“Calma. Tá tudo bem agora.”
“Tá?”
“Tá sim. Você tá protegida aqui.”
“Agente Mullet, não fala assim…”
“ Por que?”
“Por que isso me deixa…”

Ela não pode continuar. Uma lágrima cai sobre a mão de Alex Mullet, bem na junta entre dois dedos. As duas ficam observando a gota e pensando a mesma coisa. Que aqueles dois dedos eram uma metáfora de um par de pernas e lágrima, naquele lugar, veja bem, uma umidade entre as pernas.

A porta se abre e um médico entra com mais dois enfermeiros e uma turma de residentes, todos com pranchetas na mão.

“Boa tarde, como vai a minha paciente preferida? E você, posso saber quem é?”
“Agente Mullet, do FBI, caso dela. Encarregada do… Caso. Dela.”
“Posso saber o que está fazendo aqui?”
“Vim conversar com a senhorita Anderson sobre os últimos fatos, enquanto a memória ainda está fresca.”
“Pois ela ainda não foi totalmente examinada nem liberada para interrogatório, portanto tenho que pedir que se retire. E que fique claro que nada fresco entra neste hospital, estão entendendo?”
“Sim, senhor.” E para Laura, ainda segurando sua mão. “Fica tranquila, eu volto.”

Mullet ajeita a arma na frente, o cabelo atrás, desentala a cueca atrás e sai caminhando de pernas abertas, deixando Laura com taquicardia e uma camiseta impregnada do seu cheiro. Seu devaneio é interrompido pelo médico que quer medir sua temperatura à moda antiga.

(continua)

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