domingo, setembro 23, 2007
MULLET'S GUN
parte 4
Três da manhã e Laura não consegue dormir. Está irritada. O médico não a deixou ir pra casa. O exame de reflexos deu alguns desvios, segundo ele, retardo na reação da pupila, reflexos estranhos nas mãos. Decidiu que ela deveria ficar pelo menos mais 48 horas internada para fazer exames e esperar os resultados. Laura estava furiosa.
Olhando para o teto ela pensa no que fazer. Precisa avisar seus pais antes que eles avisem a polícia. Mas o que dizer para não preocupá-los nem mobilizá-los? Ligaria amanhã e diria que estava na casa de uma amiga. Pfffff, Laura solta um de seus sorrisos sem graça. Eles nunca acreditariam que uma amiga é só uma amiga e o pretexto para mais um longo debate sobre seu estilo de vida estaria lançado. Eles tinham várias teorias sobre a homossexualidade de Laura. De coisa da moda, passando por competição com o pai pelo amor da mãe até pura implicância. Laura sempre fizera de tudo para evitar o assunto, não tinha mais saco para desperdiçar palavras com eles. Normalmente esses debates/embates duravam horas e eles nunca, nunca, concordavam com nada do que ela argumentava. Pelo contrário, às vezes ela quase achava que eles tinham razão, de tanto que mexiam com a sua cabeça. Por isso era tão difícil sair do armário. Mas também, pra quê? Morava sozinha, pagava suas contas, tinha seus namoros passageiros, não precisava fazer disso uma notícia?
Ela pula na cama, vira, joga as cobertas, aperta os olhos agoniada. Precisa dormir para parar de pensar nisso e pra noite passar mais rápido. Resolve apelar para um truque baixo e perigoso que aprendeu com sua terapeuta para casos de absoluta emergência. Não podia ser feito por mais de vinte minutos sob o risco de causar um quelóide no lobo frontal do cérebro. Mas provavelmente adormeceria antes disso. Chamava-se RPGPB – ou Role Playing Game Popular Brasileiro. Era só pensar num programa qualquer da TV aberta e trocar o apresentador pela Adriana Gafanhoto. Laura escolheu o infomercial do George Foreman Grill e começou a imaginar a cena assim.
Adriana olha para a câmera brandindo uma espátula e diz:
“Cada vez que você vai cozinhar acontece isso?”
Corta para cena dela no meio de uma cozinha onde parece que explodiu uma bomba, de tão bagunçada. Ela está de avental, chapéu de cozinheira e manchas de molho pela roupa e pelo rosto. Ela canta, na frente de uma pia cheia de louças:
“Nada ficou no lugar, eu quero quebrar essas xícaras...”
Volta close de Adriana com a espátula:
“Seus pratos ficam ruins e queimados e ninguém oferece ajuda para lavar as assadeiras cheias de crostas de gordura?”
Vemos Adriana de novo na cozinha bagunçada, as mãos cheias de espuma, olhando pela janela, cantando:
“Eu ando pelo mundo, e meus amigos cadê? Minha alegria, meu cansaço... MEU AMOR CADÊ VOCÊ?”
Adriana com a espátula volta. Dessa vez sai do close e ela está numa bancada com o George Foreman Grill.
“Pois agora seus problemas acabaram. Chegou George Foremal Grill. Depois de conhecer tudo o que essa belezinha faz você vai me pedir que entre por essa porta agora e diga que me adora. Ele tem meia hora para mudar a sua vida!”
Edição de cenas mostra detalhes do produto enquanto ela fala sobre seus benefícios:
“Suas grelha com ranhuras horizontais permite que você grelhe carnes e vegetais até ficarem douradinhos, com cores vivas e apetitosas, cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores. Além disso sua cobertura de Teflon atua como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora que impede que os alimentos grudem! Absolutamente incrível!”
Corta para Adriana na cozinha bagunçada. Ela olha surpresa para um George Foreman Grill, abre sua tampa e tira um camarão lá de dentro. Come, faz um olhar surpreso de satisfação e diz:
“Hmm, faz frutos do mar, cachorro quente, pizza, grelhados, churrasco e o parangolé pamplona a gente mesmo faz! Vamos comer de tudo! Vamos comer Caetano!”
Adriana na cozinha limpa, ainda gesticulando com a espátula, concorda sorridente.
“Isso mesmo, Adriana. E ele não faz fumaça nenhuma e é muito fácil de limpar, porque desmonta. Olha, eu sempre procurei o poema de arquitetura ideal, descontruído como se nunca houvera sido e com esse aqui, vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-se as estrelas, para mim, para mim, estrelas, estrelas são para mim! Agora nunca mais mais vai dizer pro salmão, depois de grelhar: ainda tem o seu perfume pela casa, ainda tem você na sala, por que meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro, dentro da noite veloz.”
A outra Adriana completa:
“Eu estou completamente maravilhada pelo George Foreman Grill. Eu perco o chão, eu não acho as palavras, eu perco as chaves de casa, eu perco o freio, estou em milhares de cacos, eu estou ao meio, eu não moro mais em mim! E agora, o que vai ser da concorrencia?”
Adriana da espátula explica:
“Nem a simulação do sono, nem dormir deveras, pois a questão-chave é: sob que máscara retornará o recalcado? Agora amiga, não adianta permanecer a espreita no topo fantasma da torre de vigia, ligue já e encomende agora mesmo o seu George Foreman Grill. Vem, vambora que o que você demora é o que o tempo leva.”
Adriana no meio da bagunça completa:
“Ligue, não demore, enquanto espero eu escrevo uns versos, depois rasgo!”
Laura adormece.
(continua)
parte 4
Três da manhã e Laura não consegue dormir. Está irritada. O médico não a deixou ir pra casa. O exame de reflexos deu alguns desvios, segundo ele, retardo na reação da pupila, reflexos estranhos nas mãos. Decidiu que ela deveria ficar pelo menos mais 48 horas internada para fazer exames e esperar os resultados. Laura estava furiosa.
Olhando para o teto ela pensa no que fazer. Precisa avisar seus pais antes que eles avisem a polícia. Mas o que dizer para não preocupá-los nem mobilizá-los? Ligaria amanhã e diria que estava na casa de uma amiga. Pfffff, Laura solta um de seus sorrisos sem graça. Eles nunca acreditariam que uma amiga é só uma amiga e o pretexto para mais um longo debate sobre seu estilo de vida estaria lançado. Eles tinham várias teorias sobre a homossexualidade de Laura. De coisa da moda, passando por competição com o pai pelo amor da mãe até pura implicância. Laura sempre fizera de tudo para evitar o assunto, não tinha mais saco para desperdiçar palavras com eles. Normalmente esses debates/embates duravam horas e eles nunca, nunca, concordavam com nada do que ela argumentava. Pelo contrário, às vezes ela quase achava que eles tinham razão, de tanto que mexiam com a sua cabeça. Por isso era tão difícil sair do armário. Mas também, pra quê? Morava sozinha, pagava suas contas, tinha seus namoros passageiros, não precisava fazer disso uma notícia?
Ela pula na cama, vira, joga as cobertas, aperta os olhos agoniada. Precisa dormir para parar de pensar nisso e pra noite passar mais rápido. Resolve apelar para um truque baixo e perigoso que aprendeu com sua terapeuta para casos de absoluta emergência. Não podia ser feito por mais de vinte minutos sob o risco de causar um quelóide no lobo frontal do cérebro. Mas provavelmente adormeceria antes disso. Chamava-se RPGPB – ou Role Playing Game Popular Brasileiro. Era só pensar num programa qualquer da TV aberta e trocar o apresentador pela Adriana Gafanhoto. Laura escolheu o infomercial do George Foreman Grill e começou a imaginar a cena assim.
Adriana olha para a câmera brandindo uma espátula e diz:
“Cada vez que você vai cozinhar acontece isso?”
Corta para cena dela no meio de uma cozinha onde parece que explodiu uma bomba, de tão bagunçada. Ela está de avental, chapéu de cozinheira e manchas de molho pela roupa e pelo rosto. Ela canta, na frente de uma pia cheia de louças:
“Nada ficou no lugar, eu quero quebrar essas xícaras...”
Volta close de Adriana com a espátula:
“Seus pratos ficam ruins e queimados e ninguém oferece ajuda para lavar as assadeiras cheias de crostas de gordura?”
Vemos Adriana de novo na cozinha bagunçada, as mãos cheias de espuma, olhando pela janela, cantando:
“Eu ando pelo mundo, e meus amigos cadê? Minha alegria, meu cansaço... MEU AMOR CADÊ VOCÊ?”
Adriana com a espátula volta. Dessa vez sai do close e ela está numa bancada com o George Foreman Grill.
“Pois agora seus problemas acabaram. Chegou George Foremal Grill. Depois de conhecer tudo o que essa belezinha faz você vai me pedir que entre por essa porta agora e diga que me adora. Ele tem meia hora para mudar a sua vida!”
Edição de cenas mostra detalhes do produto enquanto ela fala sobre seus benefícios:
“Suas grelha com ranhuras horizontais permite que você grelhe carnes e vegetais até ficarem douradinhos, com cores vivas e apetitosas, cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores. Além disso sua cobertura de Teflon atua como uma segunda pele, um calo, uma casca, uma cápsula protetora que impede que os alimentos grudem! Absolutamente incrível!”
Corta para Adriana na cozinha bagunçada. Ela olha surpresa para um George Foreman Grill, abre sua tampa e tira um camarão lá de dentro. Come, faz um olhar surpreso de satisfação e diz:
“Hmm, faz frutos do mar, cachorro quente, pizza, grelhados, churrasco e o parangolé pamplona a gente mesmo faz! Vamos comer de tudo! Vamos comer Caetano!”
Adriana na cozinha limpa, ainda gesticulando com a espátula, concorda sorridente.
“Isso mesmo, Adriana. E ele não faz fumaça nenhuma e é muito fácil de limpar, porque desmonta. Olha, eu sempre procurei o poema de arquitetura ideal, descontruído como se nunca houvera sido e com esse aqui, vão-se os anéis de fumo de ópio e ficam-se as estrelas, para mim, para mim, estrelas, estrelas são para mim! Agora nunca mais mais vai dizer pro salmão, depois de grelhar: ainda tem o seu perfume pela casa, ainda tem você na sala, por que meu coração dispara quando tem o seu cheiro dentro de um livro, dentro da noite veloz.”
A outra Adriana completa:
“Eu estou completamente maravilhada pelo George Foreman Grill. Eu perco o chão, eu não acho as palavras, eu perco as chaves de casa, eu perco o freio, estou em milhares de cacos, eu estou ao meio, eu não moro mais em mim! E agora, o que vai ser da concorrencia?”
Adriana da espátula explica:
“Nem a simulação do sono, nem dormir deveras, pois a questão-chave é: sob que máscara retornará o recalcado? Agora amiga, não adianta permanecer a espreita no topo fantasma da torre de vigia, ligue já e encomende agora mesmo o seu George Foreman Grill. Vem, vambora que o que você demora é o que o tempo leva.”
Adriana no meio da bagunça completa:
“Ligue, não demore, enquanto espero eu escrevo uns versos, depois rasgo!”
Laura adormece.
(continua)